Conclusão:
políticas sociais e política da pobreza
Em português, a palavra “política” se refere tanto ao processo de disputa por
cargos e negociação de interesses na sociedade quanto à implementação de ações
governamentais específicas, na área de educação, saúde, meio ambiente, redução
da pobreza, e outras. Os cientistas políticos de língua inglesa usam palavras
diferentes para estes dois processos, “politics” no primeiro caso, e “policy”
no segundo, expressão que costuma ser traduzida para o português como “política
pública”. A tradição portuguesa e brasileira aponta para o fato de que
estas duas coisas estão ligadas, e uma não pode ser entendida completamente sem
a outra; a tradição anglo-saxã, por outro lado, nos lembra que a implementação
de políticas públicas deve obedecer a uma lógica própria, que requer a
existência de profissionais especializados, recursos definidos, metas
explícitas, mecanismos de tomada de decisão, sistemas de avaliação de
resultados, e assim por diante.
Políticas públicas são estabelecidas, em suas linhas mais gerais, pela
política, mas só a política não é capaz de transformá-las em ações
governamentais específicas. Elas dependem, além disto, dos fatos, e da maneira
pela qual os fatos são vistos e interpretados. Vejamos quais são os fatos, e,
depois, suas possíveis interpretações.
A Estrutura Social
Em suas linhas mais gerais, a estrutura social de um país é dada pela sua
estrutura demográfica, sua ocupação, a distribuição da riqueza entre seus
habitantes, e sua distribuição espacial e geográfica. Entram neste grande
painel, além disto, a existência de divisões de natureza étnica e cultural, e o
que se pode denominar de “capital humano”, a educação. A sociedade brasileira
vem se transformando rapidamente ao longo das últimas décadas, a tal ponto que
a agenda social muitas vezes e é superada pelos fatos.
O exemplo mais claro destas transformações é a mudança nas taxas de
fecundidade, que afeta diretamente o crescimento e as características mais
gerais da população. Entre 1950 e 1980, o Brasil cresceu a uma taxa média anual
de 2.8%, o que significa que a população dobrava a cada 25 anos. Em 2000, esta
taxa estava estimada em 1.33, o que significa uma duplicação a cada 55 anos.
Como esta taxa vem caindo, a expectativa é que, por volta de 2020, a população
brasileira já tenha parado de crescer, e começado a se reduzir. No passado,
políticas de controle da natalidade eram proclamadas como essenciais para
resolver os problemas sociais do país, e ainda hoje ainda existe quem defenda
este ponto de vista, já totalmente ultrapassado pelos fatos. A redução da
fecundidade da população não foi o resultado de nenhuma política governamental
deliberada, mas a conseqüência de uma série de fatores que incluem o ingresso
das mulheres no mercado de trabalho, a mudança da população do campo para as
cidades, o aumento da educação, o aumento da informação e da disponibilidade de
meios contraceptivos, e a mudança nos valores e na cultura da população.
O impacto desta transformação é enorme. Por um lado, o Brasil começa a deixar
de ter os problemas de um “país jovem”, que precisa abrir cada vez mais
escolas, criar cada vez mais empregos, e construir mais casas para uma
população em constante crescimento; e começa a ter os problemas de um país
adulto, que começa a envelhecer. O impacto sobre a educação é o mais visível:
até recentemente, ainda se insistia na prioridade em abrir cada vez mais
escolas; hoje, como que de repente, a cobertura escolar no primeiro grau já é
de quase 100%, e muitos estados começam a confrontar o problema de salas
vazias. A redução da pressão sobre o mercado de trabalho vai se fazer sentir
com mais força nos próximos anos, quando o tamanho das novas gerações buscando
emprego começar se tornar menor a cada ano. Com uma população jovem cada
vez menor, e uma população mais velha ainda relativamente reduzida, a taxa de
dependência da população (ou seja, o número de crianças e velhos que cada
adulto deve sustentar) se reduz cada vez mais, fazendo com que as gerações
jovens tenham a oportunidade de investir mais em si mesmas, e poupar para o
futuro. É uma janela de oportunidade que irá desaparecendo, na medida em que a
população envelheça, aumentando a carga de dependência das novas gerações. O
envelhecimento da população coloca na ordem do dia os problemas dos custos
crescentes das aposentadorias, as necessidades de atendimento médico, cada vez
mais caro, dos idosos, e toda a questão social do amparo à velhice, que até
recentemente não fazia parte da preocupação dos brasileiros.
A outra transformação dramática ocorrida no Brasil nos últimos anos foi a
transição da população do campo para as cidades. Para muitos, o Brasil
ainda é visto como um país predominantemente rural, dominado pela política,
economia e cultura do interior. Os entusiastas da reforma agrária ainda pensam
que o futuro do Brasil depende de uma revolução no campo, como se pensava
cinqüenta anos atrás. No entanto, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
do IBGE de 1992 já mostrava que apenas 22% da população do país vivia em área
rural; em 2001, esta percentagem havia caído para 16%. Em termos de
ocupação, 20.6% da população ativa do país se dedicava a atividades rurais,
muitos vivendo em regiões urbanas e trabalhando como assalariados, e não
camponeses de tipo tradicional; enquanto outros, embora vivendo em zonas
rurais, se dedicavam a atividades de prestação de serviços, comércio de
mercadorias, e outras.
Estas transformações vieram acompanhadas de mudanças também muito
significativas na maneira pela qual a vida familiar e social se organiza. Já em
1992, 22% dos domicílios brasileiros eram chefiados por mulheres: em 2001, este
número havia aumentado para 27.3%
O número médio de filhos por domicílio
em 1992 era 1.9; em 2001, havia caído para 1.1. Em 1992, 28% dos chefes de
família não tinham cônjuge; em 2001, este número havia subido para 33%, um
quarto do total.
A família tradicional, portanto, formada
por um homem responsável pelo sustento, por uma mulher dona de casa, e vários
filhos, vem perdendo lugar, e sendo substituída por diferentes tipos de
arranjos – pessoas que vivem sós, mulheres chefes de família, casais sem
filhos, pais sem mulheres. Se a família tradicional era, como sempre se
pensou, o lugar de formação e apoio para o desenvolvimento físico, cultural,
moral e mental das crianças, esta função se vê cada vez mais ameaçada, criando
novos problemas que até recentemente não eram parte da agenda de
preocupações.
Ao final do milênio, generalizou-se a idéia de que, por causa da globalização e
das políticas de estabilização econômica, as condições de vida da população brasileira
haviam se deteriorado. Na verdade, os dados mostram que, apesar do pouco
desenvolvimento econômico que houve no período, houve melhorias significativas.
O rendimento médio da população brasileira aumentou entre 1992 e 1999, segundo
os dados das PNADs, para a população como um todo e para diferentes grupos
sociais. A desigualdade, expressa tanto pela relação entre os grupos de
renda alta e baixa quanto pelo índice Gini, mostra uma pequena diminuição, mas
se manteve alta durante a década.
Apesar da pequena melhoria, o avanço foi claramente insatisfatório,
especialmente para a população de menor renda. A desigualdade de renda no
Brasil é considerada uma das mais altas do mundo, evocando a imagem de um país
dividido entre uma pequena elite de altos rendimentos e uma grande população
vivendo miseravelmente. Esta interpretação não é correta, porque os dados se
referem a diferenças de rendimento monetário, e não riqueza enquanto tal. Eles
excluem, assim, tanto as transferências e os rendimentos não monetários, que
podem ser significativos para as famílias mais pobres, sobretudo na área rural,
quanto os recursos provenientes da riqueza acumulada, que podem ser importantes
para os mais ricos. Estudos econométricos mostram que, dos diversos fatores que
afetam a renda - região, idade, sexo, raça, tipo de ocupação, educação, etc - o
mais importante, de longe, é a educação
.
Em 2001, o rendimento mensal médio de
quem tinha educação superior era cerca de 2.200 reais - um bom salário de
classe média, mas longe de indicar riqueza - enquanto que o rendimento médio de
quem não tinha educação era dez vezes menor. A implicação deste fato é que o
caminho mais importante para uma melhor distribuição da renda é o aumento e a
melhor distribuição das oportunidades educacionais, e não a redistribuição da
riqueza.
Pobreza, miséria e indigência
Pela PNAD 2001, haveria no Brasil cerca de 25 milhões de pessoas vivendo com
uma renda familiar mensal per capita de cerca de 40 reais ou menos (pouco mais
de um dólar por dia), e outras 16 milhões vivendo com até 60 reais mensais
(dois dólares). No total, cerca de 55 milhões vivem com meio salário mínimo
mensal ou menos. Que significam estes dados, em termos de condições de vida da
população? Será que a população brasileira de baixa renda não tem o que comer,
como faz crer a prioridade dada pelo governo de Luis Ignácio da Silva ao
programa Fome Zero?
Não existem informações sistemáticas e confiáveis sobre os padrões alimentares
da população brasileira, e as estimativas de desnutrição feitas a partir dos
dados de renda são indiretas demais para serem tomadas de forma literal, assim
como são arbitrárias as tentativas de estabelecer “linhas de pobreza” de um ou
outro tipo.
Existem, por outro lado, uma série
de indicadores sobre as condições de vida e padrões de consumo das famílias
brasileiras, que podem servir de indicação indireta sobre condições de vida.
Estes indicadores sugerem que a informação sobre a renda monetária per capita
das famílias está longe de se constituir em uma boa indicação sobre situações
de indigência, que seriam incompatíveis com as condições de moradia e consumo
expressas na primeira coluna do quadro. Uma outra informação relevante é que
todos os indicadores de condição de vida melhoraram ao longo da década de 90,
mais do que se poderia supor a partir do pequeno crescimento havido na renda
das famílias. Assim, entre 1992 e 2001, a expectativa de vida dos homens aumentou
de 62,4 para 65,1 anos, e, para mulheres, de 70,1 a 72,9; a mortalidade
infantil caiu de 43 para 34.6 por mil em 1999. O número de casas com água
encanada aumentou de 68.1 a
77.6%; o número de casas com esgoto passou de 46.1 a 59.2%; o número de
casas com telefone fixo passou de 18.9 a 51%; e o número de casas com telefone
celular em 2001 era de 31%.
Estes dados já nos permitem uma primeira conclusão: sem diminuir a importância
dos problemas de pobreza e deprivação que existem e afetam importantes
segmentos, o Brasil está longe de uma situação de indigência e miserabilidade
generalizadas. Além do mais, o Brasil não tem problemas de falta de produção de
alimentos, ou desabastecimento que pudessem justificar políticas de envio de
alimentos, exceto em situações extremas e excepcionais. O que falta é,
simplesmente, dinheiro, o que justifica a importância das propostas de renda
mínima que têm sido formuladas.
Existem boas razões para se preocupar
com as situações de pobreza extrema e desenvolver políticas assistenciais e
compensatórias que possam socorrer às pessoas em situações de maior deprivação.
Mas a prioridade deve estar em melhorar a qualificação e as oportunidades de
trabalho e geração de renda das pessoas.
Emprego e trabalho
A criação de postos de trabalho em qualidade e quantidade suficientes para
alterar as condições de vida da população brasileira depende de políticas
macroeconômicas cujo escopo vai além dos limites deste capítulo. Mas depende,
também, de uma série de políticas de nível micro, que podem afetar, de um lado,
a qualificação dos trabalhadores, e, por outro, a organização do mercado de
trabalho, criando condições de geração de renda e fazendo com que os ganhos do
trabalho aumentem sua importância relativa, em relação aos ganhos do capital.
O Brasil não tem índices excepcionalmente altos de desemprego, mas isto tem
mais a ver com o conceito estatístico de desemprego do que com a situação de
trabalho da população. De fato, o termo "desemprego" se refere a
pessoas que estão ativamente procurando trabalho e não o conseguem, em um
período determinado. Ele exclui, portanto, pessoas que, por diversas razões,
não estão procurando trabalho (consideradas "inativas") e as que
conseguem trabalho precário, ou temporário, enquanto buscam outro
("sub-ocupadas"). Diferentes pesquisas medem estas coisas de forma
distinta, e apresentam dados de desemprego discrepantes. Em geral, como o
seguro desemprego no Brasil é ainda bastante limitado, e não se aplica a
pessoas fora do mercado formal de trabalho, as pessoas tratam sempre de
conseguir alguma renda do trabalho, e com isto saem das estatísticas do
desemprego. Quando a economia se aquece, tem muita gente procurando emprego, e,
com isto, aumenta tanto a ocupação quanto a desocupação; quando a economia se
esfria, muita gente desiste de procurar trabalho, e, desta forma, o desemprego
pode cair.
As estatísticas de emprego são importantes para medir variações de curto prazo
da economia, mas, para uma visão mais completa da situação, é necessário olhar
para o mercado de trabalho em seu conjunto, com as diferentes formas de emprego
e ocupação. Chama a atenção, sobretudo, o dado de que somente 24% das pessoas
que trabalham no Brasil tenham um emprego formal, ou seja, um contrato de
trabalho legalmente válido; 54% dos trabalhadores não contribuem para nenhum
sistema de previdência social, e não têm os benefícios da aposentadoria. Uma
outra indicação do caráter precário do trabalho é o número de horas trabalhadas
por semana (exceto, naturalmente, em situações especiais, com a dos
funcionários públicos): 27% dos trabalhadores não completa este total.
A estratificação do mercado de trabalho está claramente associada à educação:
funcionários, militares e empregadores têm, em média, o ensino fundamental
completo (oito anos de escolaridade), enquanto que os trabalhadores em carteira
vão pouco além do antigo primário (6.3 anos em média). O nicho do funcionalismo
público é ocupado, em sua maior parte, por mulheres educadas; mas, no outro
extremo, as mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico, com ou sem carteira,
são as menos educadas. Existe também uma clara associação entre cor e qualidade
do emprego: preponderam brancos entre empregadores, funcionários e empregados
com carteira, e não-brancos entre trabalhadores domésticos e sem carteira.
Emprego e trabalho não são, portanto, a mesma coisa, e no Brasil a distância
entre um e outro é particularmente grande. Fica bastante clara, por estes
dados, a necessidade de alterar a legislação trabalhista, para permitir que um
número maior de pessoas possa ter os benefícios do trabalho legalizado, e em situação
menos precária. O atual sistema, além de aumentar os custos da mão de obra para
os empregadores (que são pelo menos 80% a mais do que os do salário nominal),
burocratiza o processo de contratação, que acaba se tornando inviável para
pequenos empresários. A Justiça do Trabalho, que deveria ter como função
principal defender os interesses dos trabalhadores, acaba funcionando como
forma de forçar acordos que, na prática, reduzem os benefícios constantes da
legislação, e criam uma cultura de conflito e desconfiança mútua entre patrões
e empregados.
..
Fica clara, também, a necessidade de aumentar cada vez mais a qualificação
profissional dos trabalhadores, através da educação em suas diversas formas;
ainda que, por outro lado, a exigência de níveis de educação formal cada vez
mais altos pelos empregadores pode levar, simplesmente, a uma valorização
crescente das credenciais educativas, sem impacto efetivo na produtividade, e
resultando em discriminação ainda maior no mercado de trabalho.
Políticas sociais de primeira, segunda e terceira gerações
A mediação entre a política e as políticas públicas é feita pelo
estabelecimento de uma agenda, que resulta das condições mais gerais -
econômicas, políticas, sociais - de uma época, e dos valores e percepções que
permeiam a sociedade em cada momento. No Brasil, a agenda republicana,
Ordem
e Progresso, se manteve intacta por quase um século, traduzida nos anos de
governo militar para “segurança e desenvolvimento”. Nos oito anos de governo de
Fernando Henrique Cardoso, o reordenamento da economia e das contas públicas
adquiriu prioridade, como condição para o crescimento econômico e políticas de
bem estar social. O governo de Luís Ignácio da Silva começou colocando em
primeiro lugar, em sua agenda, a questão da fome, dramatizando a importância da
questão social e refletindo o tom da campanha eleitoral, aonde prevaleceu a
idéia de que o governo anterior havia “esquecido o social”. Na
perspectiva predominante no governo Cardoso, o Brasil era visto como um país em
desenvolvimento, com um forte setor industrial e agrícola e uma extensa classe
média, mas sérios problemas de desequilíbrio macroeconômico e com grandes setores
da população ainda excluídos dos benefícios do desenvolvimento econômico e
social. Na perspectiva do governo Lula, o país aparece como vivendo um problema
urgente de fome generalizada, analfabetismo e latifúndio, necessitando
urgentemente de políticas redistributivas e de mobilização e promoção social.
Com diferenças de ênfase, é possível dizer que são duas faces de mesma moeda,
que podem levar, no entanto, a prioridades bastante distintas.
O estabelecimento de uma agenda de políticas públicas depende de vários
fatores, que incluem as emergências de curto prazo, que precisam ser
enfrentadas com realismo; as preferências e prioridades dos partidos,
movimentos sociais e instituições com poder e capacidade de influência no
governo e na opinião pública; e a realidade econômica e social, que tem suas
limitações e condicionantes, que não podem ser ignorados impunemente. A médio e
longo prazo, as políticas bem sucedidas serão aquelas que consigam ir além do
“apagar de incêndios” do dia a dia, assim como das preferências de momento dos
movimentos sociais e da mobilização da opinião pública através dos meios de
comunicação de massas, e partam de um diagnóstico correto a respeito dos
problemas existentes, e as possibilidades efetivas de enfrentá-los.
Nenhuma agenda social será bem sucedida se não estiver associada a uma política
econômica bem articulada e coerente, que possa gerar emprego e riqueza.
Em economia, existem também questões de curto prazo que dependem pouco da
preferência dos partidos e governos – problemas como o déficit das contas
públicas, ou do fluxo capitais externos – e orientações de mais longo prazo,
relacionadas, entre outras coisas, com as políticas de investimento do setor
público e a abertura internacional da economia, que são objeto de controvérsia.
Sejam quais forem as políticas econômicas adotadas, elas têm um duplo impacto
sobre a área social – diretamente, através da geração de empregos, e
indiretamente, através da geração de recursos públicos que possam ser
reinvestidos em políticas sociais específicas ou redistribuídos pela
sociedade. Além destas restrições e condicionantes econômicos, existem
outros, de natureza demográfica e social – o tamanho da população, sua
distribuição territorial, suas características etárias, seu nível de educação,
as taxas de natalidade, a expectativa de vida, as características das famílias,
etc – que definem o marco e o espaço dentro do qual as agendas sociais podem
ser estabelecidas e implementadas.
A noção de que a política econômica por si só, se bem sucedida, tornaria
dispensáveis as políticas sociais, já não tem muito seguidores. Tem sido mais
freqüente, nos últimos anos, a visão oposta, de que agendas sociais poderiam
ser implementadas a partir de imperativos éticos e morais, independentemente
das condições mais gerais, ou estruturais, da economia e da sociedade. Não é
difícil vislumbrar, por detrás destas duas visões, entendimentos distintos a
respeito da natureza da sociedade humana e nas pessoas que a formam. Em um
extremo, a sociedade é percebida como uma realidade dotada de leis e
determinismos próprios, que condicionam as ações, preferências e destinos de
seus participantes; no outro, a sociedade é percebida sobretudo como uma
coletividade de seres morais, dotados de livre arbítrio, e com capacidade para
ordenar a vida social conforme suas preferências. A solução para este
dilema, em princípio, é trivial – existe espaço para a implementação de agendas
sociais, mas este espaço não é livre e desimpedido, e sim marcado e delimitado
por condicionantes estruturais bem definidos, que precisam ser conhecidos.
Menos trivial é o entender quais são estes condicionantes, e, a partir daí,
poder avaliar quais políticas sociais precisam receber prioridade e têm chance
de sucesso.
A definição da agenda social do país não depende somente das condições gerais
da estrutura social, caracterizada mais acima em suas linhas gerais; depende
também do contexto econômico mais amplo, da força política dos diferentes
grupos na sociedade, e das idéias e preocupações que predominam na sociedade.
Ela depende em boa parte, também, do clima da opinião pública nacional e
internacional, moldado em grande medida pelos meios de comunicação de massas.
É possível pensar em políticas sociais em termos de três grandes tipos, ou
gerações. A primeira geração é formada pelas políticas de ampliação e extensão
dos benefícios e direitos sociais. No caso do Brasil, elas se iniciam na década
de 30, com a criação das primeiras leis de proteção ao trabalhador e as
primeiras instituições de previdência social, e culminam, pode-se argumentar,
com a Constituição de 1988, que consagra um amplo conjunto de direitos sociais
na área da educação, saúde, proteção ao trabalhador, e outras.
As reformas de segunda geração, que entram na agenda de preocupações do Governo
Fernando Henrique Cardoso e continuam com o governo Luis Ignácio da Silva,
procuram racionalizar e redistribuir os recursos gastos na área social. Elas
respondem a uma dupla motivação: a de colocar os gastos sociais em situação de
equilíbrio financeiro, e a de corrigir os aspectos mais regressivos dos gastos
sociais, que beneficiam as classes médias e altas, em detrimento das mais
pobres. A situação mais dramática de mau direcionamento dos gastos
sociais, no Brasil, é a do sistema de previdência social. No início de
2003, segundo o Presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoino, a
previdência do setor privado arrecadava R$ 71 bilhões e gastava R$ 88 bilhões
de reais anuais, para atender a 21 milhões de aposentados, que recebiam uma média
de R$ 390 mensais. Enquanto isto, a previdência do setor público arrecadava R$
21.8 e gastava R$ 61 bilhões, com aposentadorias médias de R$ 2.282 reais no
executivo, R$ 7.900 no legislativo, e R$ 8.027 no judiciário.
Uma análise de vários programas
sociais brasileiros, feita com dados de meados da década de 90, mostrava que,
além dos gastos com a previdência social, os programas de seguro-desemprego e
os serviços escolares de creche, segundo e terceiro graus também estavam mal
focalizados, havendo focalização correta, no entanto, nos programas de ensino
pré-escolar e de primeiro grau, assim como de distribuição de merenda escolar,
em relação à população escolar. A conclusão destas análises foi que “é possível
eliminar a pobreza sem a necessidade de qualquer aumento no volume total de
gastos na área social”, pela focalização correta dos recursos disponíveis.
As reformas de terceira geração seriam aquelas que buscam alterar não somente a
distribuição dos gastos sociais, mas também a qualidade dos serviços prestados,
assim como do marco institucional e legal dentro do qual as atividades
econômicas e a vida social possam se desenvolver. Várias propostas deste tipo
foram reunidas no documento sobre a “a agenda perdida” brasileira, subscrita
por um conjunto de economistas de várias tendências durante a campanha
eleitoral de 2002, e retomadas pelo Governo Lula em 2003, através de documento
publicado pelo Ministério da Fazenda.
As propostas incluem agir diretamente
sobre a desigualdade, pela distribuição direta de recursos à população mais
pobre, na expectativa de que, além de suprir carências imediatas, isto possa
ter efeitos de reativação do mercado interno; políticas estruturais, dando
acesso das populações mais pobres a ativos como o micro-crédito, a
regularização da propriedade imobiliária a posse da terra; enfatizar
transferências diretas de recursos do governo aos cidadãos, através de
tecnologias como cartões magnéticos, evitando a intermediação de políticos e
das burocracias públicas, e evitando também a necessidade de controle de preços
dos artigos de primeira necessidade como combustíveis, remédios, etc; políticas
que aumentem a capacidade produtiva dos mais pobres, através do apoio à
produção popular, garantindo melhores condições de comercialização dos produtos
e maior acesso a mercados como o de crédito; utilização do setor privado para a
provisão dos serviços, partindo do princípio de que “o papel da sociedade de
subsidiar o acesso dos que não possuem recursos a serviços sociais básicos não
significa que o Estado seja obrigatoriamente o único produtor desses serviços”;
descentralização da política social, estimulando a participação local como
forma de aumentar tanto a eficiência quanto a flexibilidade no desenho das
políticas sociais, combinada com política efetiva de monitoramento do uso
adequado dos recursos; e a unificação do orçamento social da União e
coordenação das políticas sociais com estados e municípios.
As propostas de reforma de terceira geração incluem ainda uma nova política
para a área de segurança publica, com temas como a unificação das políticas
civil e militar, a criação de uma polícia judiciária, e a aproximação entre os
órgãos de segurança e as comunidades de baixa renda
e a reforma do judiciário, com
propostas para tornar a justiça mais acessível e mais eficiente, através de
medidas como a introdução da "súmula vinculada", para fortalecer a
autoridade das cortes superiores e o controle da indústria de recursos e
liminares, e formas adequadas de controle externo do poder judiciário.
A idéia de diferentes “gerações” de política social tem sido adotada por
autores, com classificações próprias. Nancy Birdsall propõe quatro fases, para
a América Latina como um todo. A primeira corresponderia ao “período de
ouro” de desenvolvimento econômico da região, entre a Segunda Guerra e o final
dos anos 70, caracterizada pelos subsídios às classes médias. A segunda fase se
inicia na década de 80, quando as políticas sociais “submergem”, e predominam
as políticas de ajuste fiscal e redução de gastos. A terceira fase seria aquela
que tem como origem à percepção de que as políticas de ajuste fiscal não
estavam produzindo os resultados esperados, o que levou à elaboração de
propostas de políticas compensatórias, incluindo a criação de fundos de
investimento social de emergência e a focalização dos gastos sociais nos
setores mais necessitados. A quarta fase, finalmente, teria por objetivo não
mais a simples distribuição de benefícios, mas esforços no sentido de aumentar
o capital humano e os recursos das populações mais necessitadas, para que elas
não dependam tanto de subsídios governamentais. Augusto de Franco fala em três
gerações para o Brasil, sendo a primeira que vai até o início dos anos 80, de
políticas centralizadas; uma segunda que se inicia com a Constituição de 1988,
com a descentralização dos serviços sociais, mas com ainda sob a orientação e o
financiamento do governo central; e uma terceira fase, descrita como formada
por “políticas multi e intersetoriais de desenvolvimento social, de
investimento em ativos (nas potencialidades já existentes em setores e
localidades) e não apenas de gasto estatal para satisfazer necessidades
setoriais”, muito similar, portanto, com a quarta fase na classificação de
Birdsall.
Alternativas de Política Social
Mais além das medidas e propostas específicas para a área social, existem
importantes diferenças de perspectiva, que muitas vezes adquirem fortes
conotações político-partidárias ou ideológicas. No início de 2003, estas
diferenças apareceram na imprensa brasileira como uma alternativa entre
políticas universais e políticas de focalização. Em um nível mais profundo,
existem grandes diferenças entre os que propõem políticas de mobilização
social, e os que dão prioridade a políticas de metas sociais.
A oposição entre políticas universalistas e focalizadas surge muitas vezes como
uma oposição entre os defensores do Welfare State clássico, com o setor público
assumindo a responsabilidade pelos investimentos em educação, saúde, segurança
pública, etc., e os que defendem a redução do setor público, concentrando os
gastos sociais nas populações de menor renda e em situação mais crítica. Em um
país como o Brasil, aonde os gastos sociais são notoriamente mal direcionados e
usados de forma ineficiente, e aonde o equilíbrio das contas públicas, após
décadas de inflação, ainda não foi conseguido, esta discussão acadêmica perde
sentido, e a defesa de políticas universalistas se torna quase que
indistinguível das políticas de defesa de interesses estabelecidos, que se vêm
ameaçados pelas reformas. A questão do papel do setor público ou do setor
privado no provimento de serviços é mais genuína, no sentido de que incorpora,
de fato, visões distintas sobre até onde pode ir o setor público na
implementação de políticas sociais, e qual a possível participação do setor
privado. Em algumas áreas, como a educação superior e o provimento de serviços
de saúde, o setor privado tem presença predominante, e os problemas que se colocam
têm a ver com a regulação destas atividades, e não com sua legitimidade. Em
outras áreas, como a da previdência social, energia, comunicações, transportes,
e outras, a capacidade financeira e técnica do setor público tem se mostrado
extremamente limitada, mas as experiências de privatização ainda não
demonstraram, de forma inequívoca, sua pertinência.
A oposição entre políticas de mobilização e políticas de metas, que ainda não
adquiriram uma feição pública muito clara, pode ser potencialmente mais importante.
As políticas de mobilização são aquelas que partem do princípio de que só
através da participação e do envolvimento das comunidades afetadas é que
políticas sociais podem ser efetivamente implementadas. Estas políticas são
propostas por movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra
e as Comunidades Eclesiais de Base, e podem ser observadas em documentos e pela
ação de pessoas envolvidas com a área de saúde, educação, segurança, ação
afirmativa, e outros. Fazem parte desta mesma linha de idéias os sistemas de
orçamento participativo, implantados em várias prefeituras. Estas são também
políticas de focalização, na medida em que procuram trazer benefícios e
conquistar posições de poder para grupos sociais específicos, considerados especialmente
carentes. Por outro lado, elas compartem com os defensores das “políticas
universais” a desconfiança em relação ao setor privado, assim como uma certa
descrença quanto à existência de limitações orçamentárias dos governos.
O que estamos denominando, por falta de melhor termo, de “políticas de metas”,
é uma preferência por políticas definidas através de diagnósticos globais, e
implementadas pela ação e iniciativa dos governos. Em um certo sentido, são
políticas “de cima para baixo”, em contraste com as de mobilização, que
pretendem ser “de baixo para cima”. As políticas sociais universais de
primeira geração pertencem a esta categoria. Propostas de terceira
geração incluem a instituição de linhas oficiais de pobreza e o estabelecimento
de metas para a sua redução; políticas universais de renda mínima para as
populações mais carentes; a introdução de quotas raciais em escolas e serviços
públicos, para a redução das desigualdades sociais; políticas de promoção
automática nas escolas, para a redução da retenção escolar; e políticas de
flexibilização do mercado de trabalho, para reduzir os custos indiretos do
emprego e aumentar a inclusão de trabalhadores no setor formal da economia.
Políticas de metas e de mobilização não se excluem necessariamente. Por
exemplo, políticas de quotas raciais, ou de distribuição de terras, podem ser
implementadas a partir das demandas de movimentos organizados: políticas de
distribuição de recursos para populações de baixa renda podem ser implementadas
através de organizações comunitárias, que assumem a responsabilidade por
identificar os beneficiários e garantir que eles estão cumprindo as exigências
correspondentes aos benefícios – enviando as crianças para escola, por exemplo,
ou adquirindo algum ofício. Mas elas trazem consigo profundas diferenças de
concepção em relação à natureza do sistema político, do papel do Estado e das
organizações de mobilização, e sobre o peso relativo dos técnicos, que pensam
em termos analíticos sobre o interesse comum, e pretendem agir de acordo com o
princípio de delegação de poderes; das autoridades instituídas, cuja
responsabilidade faz parte dos princípios da democracia representativa, e os
militantes, que agem na defesa direta e quotidiana dos interesses e prioridades
de seus companheiros, sem ver nisto contradição com os interesses mais
gerais. São estas visões de mundo que estão competindo pela definição da
nova agenda social brasileira, e que deverão definir sua forma, sua filosofia e
seu alcance, nos próximos anos.
As políticas e a política da pobreza
O dilema que esboçamos, acima entre políticas sociais de metas e políticas de
mobilização, nos traz de volta ao início deste capítulo, quando introduzimos a
distinção entre a política e as políticas públicas, e também seu inter-relacionamento;
e à apresentação inicial do livro, quando mencionamos a discussão de Michael
Ignatieff sobre os direitos humanos como política e idolatria.
No campo da política, nos lembra Ignatieff, a introdução do tema dos direitos
humanos tem o efeito de estabelecer uma nova agenda de preocupações e
prioridades. Na versão brasileira, os temas da pobreza, do desemprego e da fome
marcaram as últimas eleições presidenciais, e deram a vitória ao candidato que
levantou mais alto estas bandeiras. Esta prioridade dada aos direitos
humanos, assim como aos direitos sociais mais prementes, corre o risco no
entanto de se transformar em
idolatria. Isto ocorre quando a adesão a estes direitos se
transforma, na percepção de seus defensores, em uma espécie de religião secular
(e às vezes religiosa simplesmente). Quando isto ocorre, a defesa dos direitos
é posta como um trunfo que divide as pessoas entre boas e más, justas e
pecadoras, e resolve as dúvidas, incertezas e ambigüidades da política pela
superioridade moral de um dos lados. Esta sacralização dos valores pode ser um
instrumento poderoso na disputa política, mas tem um impacto negativo imediato,
que é o de desqualificar os opositores nas disputas políticas, e desta forma,
comprometer as regras básicas do convívio democrático, que depende da
aceitação, por parte de todos, da legitimidade e do direito de cada um defender
seus interesses e seus pontos de vista.
No campo das políticas sociais, aonde se busca realizar e cumprir as promessas
contidas nas declarações de valores e direitos, o problema que surge com mais
evidência é que, na prática, diferentes direitos podem levar a ações distintas
e contraditórias, e dependem além disto de condições econômicas, sociais e
institucionais que estão fora do alcance dos agentes. Exemplos estão por toda
parte: o governo gostaria de aumentar o salário de todos, mas não pode aumentar
os gastos públicos nem alimentar a inflação; a distribuição de terras não pode
ser feita pela destruição do direito de propriedade; as quotas raciais podem
afetar os direitos de brancos pobres que podem ficar excluídos das
universidades; a proteção do meio ambiente não pode levar à destruição de postos
de trabalho; a defesa da indústria nacional pode significar o subsídio a grupos
incompetentes e ineficientes...
A maneira correta de resolver estes dilemas e conflitos começa por reconhecer
sua existência, e tratá-los como dilemas reais, e não como conflitos entre o
bem e o mal. No mundo das políticas públicas, estes dilemas devem ser
necessariamente reconhecidos e administrados; no mundo da disputa política, no,
entanto, a complexidade das questões tende a desaparecer, sob as luzes dos
comícios e da grande imprensa. Não é de estranhar, portanto, que governos
busquem muitas vezes devolver para a arena política dilemas e questões de
política pública que não conseguem resolver na ação administrativa do dia a
dia. Uma maneira de fazer isto é substituir os técnicos e especialistas das
diversas agências governamentais por políticos militantes; a outra é manter
todos os temas controversos sob o farol dos pronunciamentos e manifestações
políticas, não dando tempo nem espaço para que o conhecimento técnico e a elaboração
de soluções mais complexas venham a ocorrer.
Não há solução em curto prazo para os problemas da pobreza no Brasil. Para que
a pobreza seja vencida, é necessário vontade política e compromisso com os
valores da igualdade social e dos direitos humanos; uma política econômica
adequada, que gere recursos; um setor público eficiente, competente responsável
no uso dos recursos que recebe da sociedade; e políticas específicas na área da
educação, da saúde, do trabalho, da proteção à infância, e do combate à
discriminação social, e outras. Tudo isto é fácil de dizer, e dificílimo de
fazer. A construção de uma sociedade competente, responsável, comprometida os
valores de equidade de justiça social, e que não caia na tentação fácil do
populismo e do messianismo político, é uma tarefa de longo prazo, e que pode
não chegar a bom termo. Mas não há outro caminho a seguir, a não ser este.
O prefeito Loyola tem a obrigação de respeitar o povo do
município de Jucuruçu